Histórico

A Fase Experimental

A primeira fase do NAU inaugurou uma de suas linha de pesquisa: “Práticas culturais e sociabilidade no contexto urbano”. Esta linha remonta à reflexão iniciada em minha tese de doutorado, Festa no Pedaço, em que esta noção, ao passar de termo nativo a categoria analítica, começou a mostrar sua potencialidade para descrever uma particular forma de sociabilidade para além dos limites dos bairros de periferia. Motivado pela pergunta “existem pedaços no centro?”, o passo seguinte foi testar sua aplicação em outras regiões da cidade. Para tanto, apresentei ao CNPq (Programa Produtividade em Pesquisa) o projeto Os Pedaços da Cidade (1989/1990) em torno do qual um grupo de alunos começou uma experiência etnográfica em espaços centrais da cidade de São Paulo. A primeira “expedição” do NAU aconteceu ainda em 1988 e teve como recorte a tradicional mancha de lazer paulistano do Bixiga, percorrida por cerca de quinze integrantes, cada qual identificando, em seu caderno de campo, os equipamentos, a frequência de uso, os horários de funcionamento, depoimentos de usuários etc.

Uma primeira constatação se impôs: já não se estava diante de formas de sociabilidade marcadas por laços de vizinhança: nos “pedaços do centro”, as pessoas não necessariamente se conheciam (pois provinham de diferentes bairros), mas se reconheciam enquanto portadoras de códigos comuns que remetiam a símbolos, valores, gostos e outros sinais de pertencimento. A experiência das expedições foi fundamental para a construção das categorias de análise que os integrantes do NAU passaram a utilizar com frequência na organização de seus recortes de pesquisa na cidade, como “mancha”, “circuito”, “pórtico”, “trajeto”. Esta última, por exemplo, permitia abrir as fronteiras, às vezes demasiadamente fechadas, do pedaço, em direção a outros pontos do espaço urbano e, assim, estabelecer contato com lógicas e práticas mais abrangentes.

Os primeiros resultados desta pesquisa inaugural, que se estendeu por outras manchas de lazer na cidade, deram origem ao artigo “Da periferia ao centro: pedaços & trajetos”, publicado na Revista de Antropologia, vol. 35, ano 1992. Alguns dos desdobramentos dessa fase foram: a exposição Um olhar antropológico do lazer: Bixiga e esquina da Avenida Paulista com a Rua da Consolação (1992), que contou com a colaboração do Laboratório de Imagem e Som em Antropologia (LISA); a montagem, realização e supervisão de pesquisa para processo de tombamento de uma mancha de lazer popular, o “Parque do Povo”, pelo Condephaat (1993/1994) e, finalmente, a publicação da coletânea, organizada por mim e Lilian de Lucca Torres, Na Metrópole: textos de Antropologia Urbana (São Paulo, Edusp/ Fapesp, 1996), atualmente em sua terceira edição.

Em seguida o NAU entrou em um período mais reflexivo em que cada membro encarregou-se de preparar e apresentar um paper com o tema mais próximo a seu objeto de pesquisa, o que implicava escrevê-lo, distribuí-lo e expô-lo numa sessão especialmente convocada para tanto. “O significado da festa: abordagens antropológicas clássicas”; “A Escola de Chicago”; “O lazer: perspectivas atuais”; “Antropologia como crítica cultural: os pós-modernos”; “Patrimônio Cultural” – foram algumas das discussões do ano de l990 além, é claro, de sessões dedicadas à análise e debate de relatórios de pesquisa e relatórios para exame de qualificação de orientandos meus e de Vagner Gonçalves da Silva, então vice-coordenador do NAU.

 

Um novo eixo de pesquisa: a religiosidade

No decorrer dos trabalhos de campo, porém, o contato com algumas situações da rica ambiência do centro da cidade (leitura de cartas de tarô em pleno Viaduto do Chá, por exemplo) e de alguns núcleos de bairro (feiras de produtos “esotéricos” montadas em praças e shopping centers) começou a levantar novos temas e indagações, o que constituiu ponto de partida para outra leva de pesquisas em torno dos seguintes projetos aprovados pelo CNPq: “Os Pedaços Sagrados da Cidade” (1991/1992); “Sob nova direção: Práticas mágico-esotéricas na cidade” (1993/1994) “Espiritualidade em ritmo metropolitano: os novos espaços de encontro, vivência e culto na cidade” (1995/1996).

Ainda que igualmente centrada na dinâmica urbana, abria-se uma nova linha de reflexão, pois o recorte agora era dado por práticas não mais ligadas diretamente ao lazer (algumas, sim e todas dentro do tempo livre), mas à religiosidade. Tratava-se das denominadas práticas “esotéricas”, ou “místicas”, heterogêneo universo formado por elementos retirados dos mais variados sistemas filosóficos e religiosos – tradições orientais, ocultismo, esoterismo, cosmologias indígenas etc. – e realizadas em amplos e bem equipados espaços na forma de terapias “alternativas”, cursos, consumo de literatura de auto-ajuda, rituais de prosperidade, consulta a sistemas divinatórios e muitas outras formas de religiosidade.

Tais serviços e espaços, aparentemente procurados de forma aleatória e segundo o arbítrio das escolhas individuais mostraram-se, ao contrário, como um campo sujeito a regularidades e experiências coletivas: sua distribuição na mapa da cidade, o agenciamento dos espaços internos em antigos sobrados, a existência de um calendário de eventos, as pautas de consumo e outros indícios apontam para a presença de padrões de comportamento que permitem falar num certo “estilo de vida” peculiar na paisagem da cidade, marcado pela busca de medicinas alternativas, vegetarianismo, práticas corporais de origem oriental, preocupação com auto-conhecimento, vivências comunitárias.

Particularmente interessante revelou-se, aí, a aplicação da noção de circuito, evidenciando estratégias através das quais os agentes dessas práticas comunicam-se, circulam pelas instituições e estabelecem um padrão de trocas no espaço mais amplo da metrópole. Essa noção também foi empregada no projeto “O xamanismo urbano e a religiosidade contemporânea” (FAPESP/CNPq, 1997-1999). Essa pesquisa teve como objetivo estudar o processo de formação e disseminação de cosmologias e práticas terapêuticas elaboradas a partir de um vasto espectro constituído por tradições de povos indígenas e proposições retiradas de campos científicos considerados “de ponta” como a programação neuro-linguística, física quântica e outros.

Todos esses objetos de pesquisa, apesar das particularidades de seus recortes, mantinham um eixo comum: o uso do espaço e dos equipamentos da cidade, em diálogo com a dinâmica urbana de escala metropolitana. Alguns de seus resultados: Exposição Etnográfica Esotéricos na Cidade: Trajetória de uma pesquisa, no Departamento de Antropologia FFLCH/USP(1994); os livros Mystica Urbe: um estudo antropológico sobre o circuito neo-esotérico na metrópole (Ed. Studio Nobel, 1999); O Brasil da Nova Era. (Jorge Zahar Editor, Rio de Janeiro, 2000) e o artigo “O xamanismo urbano e a religiosidade contemporânea”, revista Religião e Sociedade (ISER, 2000).

 

Os Caminhos da Metrópole e os do NAU

Encerrada a fase das pesquisas sobre práticas de religiosidade ligadas ao neo-esoterismo e, percebendo o interesse dos alunos de Graduação por objetos relacionados com juventude e sociabilidade como foco de seus exercícios etnográficos (música, códigos corporais, indumentária, festas) apresentei um novo projeto ao CNPq: Os caminhos da metrópole (1999-2001). A partir dessa fase, o NAU se subdividiu em três grupos temáticos: NAU Jovem, NAU Cultura Brasileira e NAU Estudos da Comunidade Surda. O primeiro grupo reuniu orientandos em torno da nova versão do projeto Os Caminhos da Metrópole. A partir de etnografias em curso sobre comportamentos e práticas de jovens na cidade de São Paulo, propus a categoria de “circuitos de jovens” com o objetivo de oferecer uma alternativa aos enfoques de “tribos urbanas” e “culturas juvenis”, comumente invocados para tratar desse tema. A proposta supunha outro ponto de partida: em vez da ênfase na condição de “jovens”, que supostamente remete a diversidade de suas manifestações a um denominador comum, geracional, a ideia era privilegiar sua inserção na paisagem urbana por meio da etnografia dos espaços por onde circulam, onde estão seus pontos de encontro e ocasiões de conflito e os parceiros com quem estabelecem relações de troca.

Este grupo concluiu suas atividades com a publicação da coletânea organizada por mim e Bruna Mantese, Jovens na Metrópole: uma análise antropológica dos circuitos de lazer, encontro e sociabilidade (Editora Terceiro Nome, 2007) com 12 capítulos, dez dos quais com os relatos das etnografias feitas pelos alunos: os straight edgers, forró universitário, góticos na Internet, a mancha de lazer da Vila Olímpia, a balada black, os b.boys, fãs de gospel, ravers, jovens instrumentistas, pichadores e seus trajetos.

O grupo “Cultura Brasileira” reuniu alguns alunos envolvidos no projeto Do Afro ao Brasileiro: Religiões Afro-Brasileiras e Cultura Nacional: uma Abordagem em Hipermídia” de autoria dos Profs. Drs. Vagner Gonçalves da Silva (então vice-coordenador do NAU) e Rita Amaral . Este projeto articulou pesquisas de campo em cidades de cinco estados do país e realizou a experiência metodológica de representação etnográfica em novas mídias, tendo como objeto as relações entre as práticas de grupos religiosos afro-brasileiros e a cultura nacional.

O terceiro grupo – “Estudos da Comunidade Surda”, em curso, foi formado a partir de convite, em 2002, para participar de pesquisa desenvolvida por linguistas (seu foco era a língua de sinais, “libras”) e historiadores da USP sobre surdos em São Paulo. O que se esperava, por parte do NAU, era identificar a rede de sociabilidade dos surdos na cidade, a partir das categorias utilizadas nos estudos do Núcleo. O período em que ocorreu o convite teve seu papel nos rumos que essa participação tomou. Era a época das festas juninas que tomam conta de escolas, instituições, associações de bairros, paróquias, clubes, etc. e a pergunta que se colocava era: as escolas e associações de surdos também promovem essas comemorações? E outra indagação, inevitável, veio logo à tona: festa junina de surdo, tem música? Para quem sempre havia estudado diferentes formas de lazer na cidade, o estudo das festas não apenas é um recorte obrigatório como, ademais, constitui sempre uma boa via de acesso para o entendimento de regras e redes de sociabilidade de grupos sociais. Neste caso, além de ser uma boa opção, trazia estimulantes desafios.

 

Na Internet

Em 2003, comemorando o 15º ano de existência do NAU, decidi expandir seu alcance por meio da criação de um website. O projeto, elaborado por mim e Rita Amaral, implicou uma reserva de domínio na Internet e aquisição de espaço para hospedar o site. Nele, são disponibilizados artigos de autoria dos integrantes do Núcleo além de links de interesse para os temas de pesquisa, divulgação de eventos, contatos entre pesquisadores, lançamento de livros e outros eventos relacionados com a Antropologia Urbana. Em 2004, o website do NAU foi indicado e incluído pelo Portal UOL como um dos cinco melhores na categoria Antropologia. O site NAU constitui uma ferramenta de comunicação mais ágil, permitindo o contato entre os membros de fora da cidade de São Paulo com os que se reúnem semanalmente e disponibiliza para ambos o calendário das atividades, idas a campo, reuniões e o resultado das discussões.

E por meio de sua revista eletrônica PONTO.URBE (ISSN 1981-3341) já no sexto número (2010), inauguramos um novo canal de discussão e divulgação mais sistemático e periódico da produção não apenas de seus membros – principalmente daqueles que já completaram sua formação e estão inseridos em diferentes universidades – mas também de pesquisadores de outros centros e áreas afins, interessados na abordagem antropológica do fenômeno urbano, sua dinâmica e suas instituições.